EU, MARTA E KOPRZYWNICA
Eu mais parecia um gato esparramado no tapete.
Era fim de manhã do cinzento 25 de janeiro de 2004, aniversário de 450 anos da cidade de São Paulo.
Três anos antes, a já eleita mas ainda não empossada Prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, havia me chamado para reformular os espaços do Edifício Matarazzo, a fim de lá instalar o Gabinete do Prefeito e todas as Secretarias Municipais.
Foi um trabalho longo, gratificante e intenso.
Afinal, na véspera da inauguração, coloquei cada coisa em seu lugar. O tapete, os móveis , os quadros, as bandeiras e fui para casa dormir. Na manhã seguinte, cheguei cedo e percorri sozinho todo o edifício.
Ao entrar no Gabinete vazio, à luz do dia, reparei que o tapete estava cheio de fiapos e bolinhas de linha – normal até, para um tapete novo.
Mas acho que haviam esquecido de passar o aspirador. E eu, é claro, jamais acharia um àquela hora.
Não tive dúvidas: estirei-me no chão e comecei a catar as tais bolinhas, que não acabavam mais.
Às tantas, levantei meu rosto lentamente e notei a cortina balançando, como quem quer sair pela porta-balcão, entreaberta.
Com o olhar fixo, vendo a cidade de São Paulo através do tecido da cortina, lembrei-me de meu pai, Gregório.
Ele havia falecido pouco tempo antes. Apesar de ter preferido que eu seguisse seus passos na direção da tecelagem que havia fundado, sempre respeitou e apoiou minha opção por outro caminho.
Pensei que teria se orgulhado ao saber que o filho havia trabalhado no projeto da nova sede da Prefeitura de São Paulo, cidade que sempre amou, defendeu e considerou o melhor lugar do mundo para se viver.
Cidade que o acolheu após muito sofrimento passado na Segunda Guerra. Ele era natural de um pequeno povoado no interior da Polônia, de nome impronunciável, Koprzywnica.
Meus avós eram donos de um pequeno moinho e viviam com seus quatro filhos – meu pai, um irmão e duas irmãs.
Quando a guerra começou, eles pagaram com sacos de farinha para que vizinhos os escondessem – eles no porão de uma casa, os filhos no de outra.
Uma noite, do porão onde permaneceram por mais de três anos, sob a cama da senhora que as abrigava, as crianças ouviram uma conversa e souberam: os pais haviam sido executados na aldeia, naquela mesma tarde.
[Anos atrás, numa viagem à Polônia, descobri a aldeia, o moinho, a casa, o porão, os documentos, as pessoas e minha história.]
A guerra acabou e os 4 irmãos atravessaram alguns países da Europa Central até se estabelecerem na Itália.
Tempos depois, em busca de uma nova vida, desembarcaram no Porto de Santos, num país que desconheciam, mas que haviam ouvido falar era um país de oportunidades, o país do futuro.
Perguntaram ao meu pai: Rio ou São Paulo? Ele quis saber: Onde é menos quente?
O rapaz que respondeu jamais soube da importância de sua resposta.
Subitamente, a porta dupla do Gabinete da Prefeita se abre e entra, decidida, Marta Suplicy, seguida de alguns de seus secretários. Surpresa, ela pára e sorri ao me ver estendido no chão catando fiapos soltos de algodão.
Eu estava com o olhar feliz…, perdido através da cortina que esvoaçava pela porta-balcão.
Isay Weinfeld
Folha de S.Paulo
Ilustríssima
27 de novembro de 2011