PASSEIO MUSICAL

São Paulo é uma cidade que se atravessa.
Se você estiver de carro, provavelmente estará com os vidros fechados.
Mantenha-os fechados e tente ver a cidade, ou enfim, o que resta dela, ouvindo uma trilha sonora ao fundo. Hoje em dia, qualquer pessoa tem 2 fios pendurados na orelha.
Se estiver passando pelos Jardins e não conseguir ver nenhuma casa por causa dos muros e das grades, ouça Diário de um Detento, do Racionais Mc’s.
Quando parar num sinal de trânsito e ficar observando as pessoas atravessarem a rua, ouça Nino Rota, e verá que não é preciso ser italiano para ser felliniano.
Se seu olhar desviar para aquele grupo de mendigos no chão, ouça Esther Ofarim cantando Earthquake.
Ao passar pelo Parque Ibirapuera é obrigatório colocar qualquer CD do Dalgas Frisch. Senão, talvez você não ouça nada.
Se passar pelo Bixiga, com certeza vai ouvir Domenico Modugno, mesmo com a janela fechada. Mas, se estiver na Liberdade, não ouça Sakamoto. Não combina.
Se você se sentir acuado pelos pedintes ao parar em outro farol de trânsito (e se o Nino Rota do farol anterior já tiver terminado), tente ouvir Bernard Herrmann e aproveite para tomar um Lexotan junto.
Se for pegar o Minhocão, ouça qualquer coisa. Tanto faz.
Se, num rompante, você acordou naquele dia para ser feliz, ouça a trilha do filme “Melhor é Impossível”. Nem a feiúra da cidade te fará infeliz naquele momento.
Se você tiver um pouco de humor, tente ouvir Hanna Aroni na 25 de Março e a maravilhosa Warda em Higienópolis.
Se desviar seu caminho pela marginal, lembre-se de Cry me a River, mas prefira Chora um Rio, a versão inteligente de Arthur Nestrovsky.
Rita Lee não vale. É covardia. Combina com qualquer momento da cidade, em qualquer lugar, a qualquer hora. Jamais será uma escolha óbvia.
Mas não ouça Sampa naquele cruzamento, nem Trem das Onze no Jaçanã.
Ao passar pelo Edifício Itália, esqueça o Peppino di Capri e lembre-se do Tom Zé.
Se estiver passando perto da Ladeira da Memória, não fique tentado a largar o carro e perder o rumo. Ouça a música de Zecarlos Ribeiro e desça até o Vale do Anhangabaú.
Ao cruzar o Memorial da América Latina, evite Mercedes Soza. Cai melhor Chopin. A marcha, com certeza.
Se você adora a deslumbrante arquitetura mediterrânea brasileira, vá de Mikis Theodorakis. Se baba pela neoclássica, tente Arvo Pärt. Ele é bem melhor que nossos edifícios.
Se o trânsito faz com que você continue andando em círculos, ouça Yes mas também ouça F.Lemarque, e sinta a razão de Jacques Tati ser um cidadão do mundo.
Se vierem vender flores, tente rapidamente sincronizar a oferta com o verso “compre-me este ramito…”. Sarita Montiel jamais imaginaria.
Mas, se você realmente quiser sentir fortes emoções, aumente ao máximo o som de seu carro e coloque 4’33”, de John Cage. Abra todas as janelas, pise fundo no acelerador, olhe bem para nossa querida São Paulo e deixe entrar o ar puro e o sol da manhã…

Folha de S.Paulo
Morar
28 de setembro de 2007

Isay Weinfeld Isay Weinfeld